Dr. Sérgio Ricardo Hototian
Quando se fala em adoecer mental, ouvem-se inúmeras vezes: “Devemos
evitar rótulos!”. No entanto, substituindo o termo adoecer por sofrer,
observamos uma obscura relação no binômio sofrer-adoecer, adoecer-sofrer,
suscitando-nos inúmeras indagações: “A doença mental é uma realidade ou
um mero produto do saber médico? Existe adoecer sem sofrimento? Os
sofrimentos podem ou não levar ao adoecer? O adoecer é implacável? Uma
vez doente, sempre doente? O doente de hoje não poderia ter sido o
normal de ontem? A noção do próprio sofrimento pode ou não ser um ponto
de partida para evitar a escuridão do fim do túnel? Afinal, quais são os
limites dessa obscura relação? É possível romper esse binômio? Enfim, é
possível separar o biológico do psíquico e do social em termos de doença
mental? Esses limites esbarram no terreno das hipóteses sobre a gênese
do adoecer em que as correntes biológica, psíquica e social travam uma
férrea batalha em seus guetos de conhecimento, muitas vezes isolados em
suas verdades teóricas, estanques e distantes do sofrimento dos doentes.
É o que se observa quando ouvimos: “Sou contra rótulos, mas psicótico eu
não cuido!”, ou “Esse é crônico, não temos nada a fazer por ele”, ou “A
psicanálise é uma farsa!”, ou “Psiquiatras! Ah, são uns bitolados, só
sabem dar remédios!”, ou, ainda, “A doença mental é uma questão
meramente social – o doente é fruto do meio!” Muitas poderiam ser as
explicações para essa briga e talvez ficássemos aqui uma eternidade,
travando uma discussão meramente teórica lembrando uma disputa de fé. No
entanto, se o que queremos é o bem estar de nossos pacientes, devemos
nos despojar de nossa rigidez conceitual, aproximando-nos do sofrimento
deles sem preconceitos de qualquer espécie, pois só assim poderemos
tangenciar o âmago de suas necessidades.
Tentarei elucidar, de forma breve, alguns aspectos ligados às três
formas de abordagem do funcionamento mental. Em qualquer ramo do
conhecimento, a tendência é a especialização visando seu aprofundamento.
Quando se verticaliza em uma ótica é natural se afastar de outros
enfoques. É possível aceitar várias frentes de visão de um mesmo objeto
de estudo sem, no entanto, ser contraditório. É o que proponho na
discussão do adoecer mental. Entendo que o ser humano é
bio-psíquico-social em sua origem, formação e desenvolvimento, e que não
podemos deixar de enxergar esta realidade mesmo quando nos aprofundamos
ao escolher nossa linha de atuação como psiquiatras, psicanalistas,
psicólogos, sociólogos ou filósofos a respeito do adoecer mental.
É sabido que o sistema nervoso, através da modulação da secreção de
neuro-transmissores, participa ativamente da resposta a estímulos,
inclusive os emocionais. A questão polêmica começa aí. As teorias
psicodinâmicas postulam que, em primeira instância, o relacionamento com
o mundo externo depende do funcionamento de um código interno em que
pesam estruturas emocionalmente constituídas. Este código estaria
situado em um universo acolhedor de uma realidade caótica cuja ordem é a
desordem, funcionando sem uma lógica moral, mas própria e independente,
chamado inconsciente. Os determinantes desse universo caótico seriam
primitivamente constituídos nos primeiros anos de vida em uma linguagem
sem palavras, competente o suficiente como código de comunicação entre a
mãe e seu bebê.
Critica-se Freud atribuindo-lhe falta de base científica para suas
colocações a respeito do inconsciente, determinismo psíquico, aparelho
psíquico (id, ego, superego), relação do mundo mental com os mitos e,
finalmente, a tênue relação do funcionamento mental normal com o
patológico (a noção de núcleos psicóticos). No entanto, nenhuma teoria
científica conseguiu excluir ou derrubar tanto essas hipóteses
psicanalíticas como outras a respeito da agressividade humana, da
relação entre o instinto de vida e o instinto de morte e os mecanismos
de projeção, deslocamentos e defesas, emocionalmente constituídos e
utilizados no dia-a-dia de todos nós “normais”.
Dizem, também que a psicanálise não evoluiu. Puro desconhecimento! Pelo
contrário, a psicanálise tem nos trazido notáveis estudos a respeito de
inúmeros conceitos como, por exemplo, de que o psicótico seria inviável
à abordagem psicanalítica – talvez o conceito mais polêmico da idéia
original de Freud. Os trabalhos de Melainde Klein, Herbert Rosenfeld,
Donald Wynnicott, Wilfred Bion e muitos outros têm ampliado nossa visão
sobre a abordagem de psicóticos. Os atuais estudos da observação da
relação mãe-bebê têm nos aproximado de muitas da idéias intuídas por
Freud, como as fases do desenvolvimento emocional, por exemplo. É o que
se observa em pacientes agonizados ou crônicos quando se comportam como
bebês (dependentes, tiranos e emocionais), levando tudo à boca quando
sentem prazer ou angústia (sensações boas ou más). Curiosamente, o mundo
das sensações é o mesmo mundo que alimenta a tirania do psicótico, do
bebê e de todos nós em muitos momentos.
A idéia original de núcleos psicóticos leva em conta a realidade de
todos nós: todos fomos bebês que viemos de um pai e de uma mãe, tivemos
uma relação afetiva e uma linguagem primitiva (pré-verbal). A estas
primitivas relações chamadas objetais refere-se o mundo das emoções que
emanam das tenras e profundas bases do funcionamento psíquico de cada um
de nós.
A capacidade humana de recordar e de rememorar traz à tona, a título de
agradáveis e desagradáveis (boas ou más), o contexto das emoções dos
primeiros momentos da vida mental (sensações tiranas, ilógicas,
irracionais). A relação do homem com o mundo externo estaria diretamente
ligada à sua relação com o seu mundo interno, projetando para fora de si
mesmo seu céu ou seu inferno em todos os momentos de sua vida.
A psicanálise, ao contrário do que se divulga, pode ser uma grande
aliada dos métodos biológicos e sociais no tratamento do paciente
adoecido (desde que esteja em condições de ser abordado) e não apenas um
método de auto-conhecimento dos chamados “normais”. Observa-se isto no
dia-a-dia quando o paciente tratado nas três frentes terapêuticas
torna-se mais acessível a mudanças e evoluções, beneficiando-se. Por
outro lado, é impossível tratar psicoterapicamente um paciente agudizado
sem auxílio de medicamentos. É o que vejo em minha vivência e na de
outros colegas. Pelo contrário, um paciente com uma família não
colaboradora ou com uma orientação vertical tende a ter prolongado o seu
sofrimento e facilitada a cronificação de seu “momento patológico”.
É inaceitável negarmos a eficácia do tratamento farmacoterápico a não
ser que psicotizemos nossa visão sobre o adoecer mental, negando-o ou
ignorando-o . Afinal, a doença mental não é um conto de fadas ou uma
aventura intelectual, mas uma realidade brutal e sofrida.
A psiquiatria lida com o fenômeno patológico do qual se faz necessário o
diagnóstico de normal, lida com os aspectos da consciência fazendo-se
necessário um inventário histórico: queixa principal, história pregressa
da moléstia atual, antecedentes pessoais e familiares e exame físico.
Leva em conta os sintomas e sinais como em toda propedêutica médica,
partindo do ponto de vista que a doença mental é primariamente
biológica.
Não podemos deixar de enxergar os grandes estudos da psicopatologia como
também da psiquiatria biológica, como por exemplo no advento do
carbonato de lítio nas psicoses maníaco-depressivas e em outras
situações, no advento dos neurolépticos como terapêutico e auxiliar na
remissão dos quadros delirantes paranóides e alucinatórios. No advento
da clozapina e da risperidona no tratamento de pacientes cronificados
graves, com sintomatologia negativa (esquizofrênicos residuais), temos
visto resultados surpreendentes, como no caso de pacientes de longa
história de internações, de convívio social impossível, que até pouco
estariam desenganados e hoje têm tido uma vida social longe dos
hospitais, desempenhando papéis que não faziam há anos. O uso de
antidepressivos, desde os clássicos antidepressivos tricíclicos,
inibidores da Mao, até os inibidores da recaptação de serotonina (ex.
Fluoxetina) e outros, têm sido grandes aliados na minimizaçao do
sofrimento de pacientes depressivos, ansiosos, fóbicos,
obsessivos-compulsivos e compulsivos (droga-adições). Os
benzodiazepínicos, fiéis aliados no controle da síndrome de abstinência
alcoólica e no controle de inúmeras modalidades de ansiedade podem ser
usados, com sucesso, aliados a neurolépticos tradicionais até mesmo nos
surtos psicóticos agudos de natureza desconhecida, quando alguns casos
paranóides geram ansiedade extrema capaz de irromper em uma agitação
psicomotora. Observamos também que outras categorias de fármacos podem
ser utilíssimos na psiquiatria como a carbamazepina, nos distúrbios do
humor, e a clonidina, um anti-hipertensivo usado na síndrome de
abstinência de opiáceos (morfinas em geral). Sem dúvida alguma, o
desenvolvimento da psiquiatria biológica representa um notável avanço na
compreensão do aspecto biológico do adoecer mental.
Os aspectos sociais, por sua vez, podem ser francamente notados no
comportamento e na atitude de famílias de psicóticos que, por exemplo,
quando compreendem a dimensão da doença de seu familiar, muitas vezes
comportam-se de forma a boicotar qualquer abordagem terapêutica, É muito
freqüente observarmos no dia-a-dia fatos curiosos, como por exemplo
famílias que retiram pacientes graves sem alta, contrariando a
recomendação médica, e esses doentes voltam poucos dias depois, piores
do que estavam por ocasião da internação.
Outra coisa que se observa é que, quando um paciente gravemente
comprometido se submete a um tratamento (psicoterapia,
psicofarmacoterapia e acompanhamento terapêutico), ao apresentar sinais
mínimos de melhora são imediatamente retirados do tratamento pela
família. Quando a família é devidamente esclarecida frente à etiologia,
o caráter e a gravidade da patologia de seu familiar e assume uma
postura de apoio no tratamento do doente, notamos uma grande melhora dos
sintomas e sinais.
Muitas teorias têm sido ventiladas no sentido de entender a dinâmica
grupal familiar e normalmente postula-se que, como em todo grupo, a
família constitui um corpo de relações emocionais fortemente engajados
de mecanismos psicodinâmicos como projeções, deslocamentos e negações,
onde o doente do grupo tem a função de drenar toda a “doença”dos
componentes do grupo. O doente, na maioria dos casos, é um bode a ser
imolado. É comum em famílias e em toda formação grupal a caça ao
culpado, onde aquele que atua ou destrói não aparece, tornando-se vítima
de suas próprias atuações, culpando os outros pelos seus fracassos e
anulando as eventuais possibilidades de autocrítica. A noção de mundo
interno torna-se exígua e até inexistente quando se pode culpar o outro
por todas as mazelas, dificuldades ou fracassos da própria existência. A
observância de cada fato, isolado da carga emocional que representa,
pode se tornar algo muito difícil, principalmente quando não se percebe
a si mesmo, passando a não se perceber também o limite com o outro. A
importância da análise pessoal se faz presente, muitas vezes, a cada
indivíduo do grupo ou ao grupo como um todo (terapia familiar).
Quanto mais comprometido emocionalmente o indivíduo, menor a noção de
suas necessidades, distanciando-se cada vez mais de sua realidade
interna. No entanto, na formação emocional do “ser” pesam atributos
também de ordem social e biológica, como uma gestação sadia, uma
infância acolhida e respeitada e um ambiente que propicie um
desenvolvimento adequado e digno.
Concluindo, não é possível olhar para o homem sem enxergar uma mente em
um corpo e que ambos necessitam de cuidados desde a sua concepção até os
seus últimos dias, independente de estarem ou não “doentes”. O homem
está indubitavelmente inserido em micro e macro grupos e sua relação
interpessoal rege-se simbólica, ou melhor, “emocionalmente”. Acredito
que boa parte do “mundo psicótico”ou “doente”manifesta-se nas relações
interpessoais, pois insere-se no “universo das emoções” que, aliás,
existe inclusive em todos nós “normais”. Penso que muitas dessas emoções
podem ser transformadas tanto em sofrimento e doença, quanto em luta e
vitória. “Nada é imutável, tudo flui, estamos em constante
movimentação”(Heráclito, século VI a C.).
Podemos transformar grande parte de nosso destino, à medida que
transformamos o que pensamos. “Inteligente é o indivíduo capaz de
observar a si mesmo” como diz Dostoievski em “Crime e Castigo”. Entendo
que os fatos de nossa existência, tanto as realizações vitoriosas como
as desastrosas são manifestações externas, interlocutoras fiéis do nosso
mundo interno. Desdobro o “Penso, logo existo” de Descartes em: “Nossa
existência é fruto direto dos pensamentos que cultivamos dentro de nós”
. Assim sendo, o ser humano tem na liberdade tanto asas para voar como
correntes para escravizá-lo, “O homem está condenado a ser escravo de
sua própria liberdade” , como diz Piaget. Acredito, também, que o homem
é um ser simbólico e não-racional, como diz Cassirer, que ao fazer uma
escolha o faz simbolicamente, por mais racional que possa parecer.
As emoções podem e devem ser abordadas pelas práticas psicodinâmicas
tanto como método terapêutico quanto método de autoconhecimento e isto
representa um alívio para todos nós. O universo das emoções, antes de
mais nada, está presente tanto no mundo dos atores, dos poetas e dos
artistas como no mundo dos filósofos, dos cientistas, dos sacerdotes,
dos nossos doentes e de nós mesmo, “doutores”.
Finalizo este artigo citando o encerramento de “A tempestade”, de
Shakespeare:
“Esses atores eram todos espíritos e dissiparam-se no ar, sim, no ar
impalpável. Um dia, tal e qual a base ilusória desta visão, as altas
torres envoltas em nuvens, os palácios, os templos solenes, e todo este
imenso globo hão de sumir-se no ar como se deu com esse tênue
espetáculo. Somos todos feitos da mesma substância dos sonhos e, entre
um sono e outro, decorre a nossa curta existência”. |